Interessante como o 3=6 ostentado pelos veículos DKW - As Pequenas Maravilhas - é sempre motivo de indagações para quem aprecia o carro mas não conhece bem suas características mecânicas ou de sua história. Realmente deve ser intrigante essa relação de "igualdade" à maioria dos olhos desses admiradores.A resposta está na ponta da língua de qualquer aficionado pela marca DKW; Por ter motor de dois tempos seus três cilindros, em teoria, equivalem a um motor de seis a quatro tempos. Isso, porque para um mesmo número de voltas, o de dois tempos produz número de explosões ou "tempos motor" em dobro. Assim cada cilindro do motor de dois tempos produziria o dobro em potência e torque em relação ao de quatro com mesmo deslocamento por cilindro. Por diversas razões sabemos que essa relação não é tão redonda, mas a vantagem para o de dois tempos é inegável. Dimensionar um valor para essa relação, acho muito arriscado, pois haveria de considerarmos muitas variáveis. Exemplo é que os modernos motores de 1000cm³ de três cilindros atuais conseguem bem mais potência e até um pouco mais torque máximos que nossos bravos DKW. Claro que estou falando numa comparação que evidencia uma vantagem de 50 anos de evolução para o de quatro tempos e que incluem o embarque de muita eletrônica e a sensível evolução das características da gasolina atualmente disponível. O que torna a comparação por demais injusta.
Por falar em injustiça, algo que me incomoda é que enquanto o Otto ficou bastante conhecido como inventor do motor de quatro tempos e, Diesel pelo motor que leva seu nome, quase não se fala nos inventores do motor dois tempos. Pior, muitas vezes a invenção dos motores de dois tempos como conhecemos é creditada a outros inventores como Lenoir e Nikolas Otto que desenvolveram motores sem compressão, também conhecidos como atmosféricos. Tais motores diferem em muito dos motores DKW de qualquer geração. Os motores de dois tempos são posteriores aos de quatro e nasceram da vontade de seus inventores de produzirem motores eficientes livres do subjugo da patente de Otto. A história tem vários personagens. É é quase unanimidade a opinião de que o motor de combustão não é obra de um só inventor, mas, fruto da coesão de vários inventos distintos e aperfeiçoamentos sucessivos.
Fg02 - Motor atmosférico de dois tempos de Lenoir - breve existência com relativo sucesso
Os primeiros motores a combustão interna de sucesso comercial eram motores de dois tempos, mas bastante diferente dos que conhecemos hoje. Esses motores a explosão ou a gás funcionavam em ciclos sem compressão. A história cita vários precursores que se valiam do ciclo sem compressão. Esse ciclo invariavelmente tinha três fases assim distribuídas:
- No primeiro tempo, movimento de recuo do pistão, se sucediam duas fases; aspiração e explosão/expansão.
- No segundo tempo, movimento de avanço do pistão, ocorria uma única fase, a de descarga ou escape.
Os motores com esse ciclo mais difundidos foram, inicialmente, o do belga Étienne Lenoir, por volta de 1860. E, quase ao mesmo tempo, o dos sócios italianos Nicolò Barsanti e Felice Matteucci. Posteriormente a dupla Otto e Langen passou a dominar a produção de motores atmosféricos. Em comum, os modelos desses inventores tinham baixíssima eficiência energética e relação potência / volume.
O Motor de Lenoir era basicamente uma máquina de Watt de duplo efeito em sua concepção, mas adaptada para funcionar como motor a explosão. Teve relativo sucesso comercial.
Fg03 - Esquema do motor dois tempos sem compressão de Barsanti e Matteucci
A maquina de Barsanti e Matteucci era mais original. A transformação do movimento alternado se dava por cremalheira e pinhão conectado a um volante com roda livre. O empreendimento não teve êxito comercial e foi descontinuado após a morte de de Barsanti, em 1864. No mesmo ano Otto havia construido e patenteado seu motor atmosférico - sem compressão - muito parecido como de Barsanti ou, segundo alguns autores italianos, praticamente uma cópia.
Fg04 - Motor de dois tempos de Otto e Langen - auge para os motores atmosféricos
Otto e Langen superaram o sucesso de Lenoir, seus motores tiveram milhares de unidades produzidas, falam em cinco ou dez mil, contando os fabricados sob licença por terceiros. O sistema de roda livre montado entre cremalheira e volante - semelhante ao empregado nos motores de Barsanti e Matteucci - mais que dobrou a eficiência térmica dessas máquinas em relação as de Lenoir, segundo consta em vários textos. A principal razão é de o pistão funcionar em velocidades de subida e descida diferenciadas, permitindo - graças a um lento movimento de recuo do pistão - um enchimento sempre eficiente e, em seguida - com uma breve parada do deslocamento - a combustão quase que completa em volume constante, para só depois aproveitar a força de expansão dos gases quase que por completo. Um desses motores pode ser visto em funcionamento num vídeo do YouTube. Interessante notar o descompasso ou falta de sincronismo entre a velocidade do motor e o ritmo das explosões.
Vídeo no you tube - Motor de Langen e Otto - um dois tempos sem compressão
Mas, a grande evolução estava por vir: o surgimento do motor com compressão que colocaria os motores de combustão interna em um novo patamar de rendimento térmico e volumétrico, vindo suplantar de vez o motor a vapor.
Schmidt já em 1861 mostrou a importância da compressão da mistura explosiva para se obter melhores rendimentos térmicos. Alphonse Beau de Rocha, no ano seguinte, idealizou o ciclo do que seria o motor de quatro tempos. A partir daí o caminho estava traçado, faltava a concepção do engenho que obedecesse a receita de Beau de Rocha, elaborada após as conclusões de Schimidt e considerada por muitos como um grande divisor de águas do desenvolvimento do motor de combustão interna.
Não era tão fácil dar vida a esse enredo como pode parecer hoje. Não só os acervos teóricos eram parcos como os métodos de construção eram precários. Alguns anos se passaram até que Nikolaus Otto juntamente a Eugen Langen construisse seu primeiro motor a quatro tempos, vindo a obter patente em 1876. Essa história não é tão precisa quanto estou contando. Vários autores alegam que Otto não tinha conhecimento do trabalho de Beau de Rocha, cabendo a ele todo o mérito da concepção do motor quatro tempos. Por outro lado, há reivindicações de autoria para outros inventores. Algo tão polêmico como a invenção do avião. Verdade é que nesse consórcio de mentes brilhantes muitos deram suas preciosas parcelas, mas Otto foi o contemplado, colheu os melhores louros e assumiu as rédeas da exploração comercial. Sua patente lhe concedeu exclusividade sobre o motor de quatro tempos por vinte e cinco anos. Entretanto, após dez anos, em 1886 a patente de Otto foi revogada devido ao reconhecimento da existência anterior da patente de Alphonse Beau de Rochas, que definia o ciclo de quatro tempos para motores de combustão interna já em 1862.
Mas, em dez anos se faz muita coisa. A receita do ciclo utilizado por Otto parece algo mais que intuitivo ou natural. Um motor alternativo onde se enche de mistura pelo recuo do pistão com uma válvula de admissão aberta, comprime a mistura ao avançar fechando as válvulas; inflama a mistura no ponto morto superior do pistão e aproveita o recuo do pistão com as válvulas fechadas para transformar a expansão dos gases em tempo motor; Novo movimento de avanço do pistão? Agora é só abrir a válvula de escape para se livrar dos gases queimados e recomeçar o ciclo.
Motor alternativo a combustão interna com compressão e ciclo de quatro tempos parecem ter sido feito um para outro. Não foi por acaso que essa configuração foi a primeira a surgir em obediência ao ciclo de Beau de Rocha e se tornar o modelo predominate desde o início até nossos tempos.
Mudar a receita, casando o ciclo das quatros fases de Beau de Rocha - admissão, compressão, explosão/expansão e escape - com dois tempos mecânicos (um de avanço e um de recuo do pistão) não parecia nada fácil. A história mostrou que realmente não era. Mas, com as restrições impostas pela patente de Otto o desafio estava lançado e, como sabemos, em resposta ao surgimento de grandes desafios sempre aparecem homens dispostos a vencê-los. Neste caso, pelo menos dois teriam grande êxito.
Já em 1878 o Escocês Dugald Clerk desenvolveu um motor com compressão onde as quatro fases do ciclo de Beau de Rocha eram realizadas em apenas dois tempos. O "pulo do gato" de Clerk foi injetar a mistura sob pressão no cilindro, ao invés desta ser simplesmente aspirada. Para isso ele dotou seu motor de um cilindro adicional que funcionava como bomba, encarregada de injetar a mistura na câmara. As fases de enchimento e descarga foram fundidas em uma só, conhecida como lavagem. A entrada da mistura era feita por uma válvula direcional no cabeçote. A descarga feita por janelas na base inferior do cilindro. Apesar do cilindro extra, esse motor se apresentava com uma construção mais simples que o de quatro tempos devido a ausência de mecanismos de acionamento de válvulas e seus agregados. Apesar de ter perdido terreno para uma invenção posterior de motor a gasolina, a configuração do motor de Clerk é a base dos motores de dois tempos a diesel atuais, ainda bastante utilizados na área naval. Nesses motores, o cilindro extra foi substituído, em geral por um soprador de lóbulos rotativo.
Em 1890, doze anos depois de Clerk apresentar seu motor e quatro anos após a revogação da patente de Otto, Joseph Day conseguiu patente de um motor que realizava praticamente as mesmas operações do motor de Clerk, mas com uma grande simplificação construtiva: se valia de uma configuração de cárter fechado, quase incomum na época, para realizar o trabalho de compressão da mistura a partir do movimento do único pistão do motor. Essa configuração permitiu sensível redução de peso, mas trouxe um novo problema a ser resolvido: o da lubrificação, já que o cárter não se prestava a armazenar óleo lubrificante. Day veio a resolver o problema misturando óleo lubrificante ao combustível, o que conferiu aos seus motores a emissão da fumaça azulada presente nas nossas pequenas maravilhas. (acho que Clerk merece uma homenagem póstuma no próximo Blue Cloud)
O motor de Day, teve que competir com o de Clerk por bom tempo. A injeção da mistura no cilindro era feita por janelas semelhantes a de escape, situadas na mesma altura. Isso fazia com que em determinados regimes houvesse muita perda de mistura. O motor de Day, apesar de mais simples e leve, era menos eficiente, consumia e poluía mais que o motor de Clerk. Essa vantagem ´diminuiu sensivelmente quando a DKW adquiriu da Deutz licença para utilizar o sistema "Schnürle" de fluxo reverso que fora patenteado por Adolf Schnürle quando trabalhava para a Deutz. A partir daí, a DKW com o modelo de Day aperfeiçoado dominou por muito tempo o mundo das motocicletas.
Na década de 1930, além dos motores de dois tempos baseados no ciclo de Day, a DKW também fabricou para seus carros motores de dois tempos nos moldes do motor de Clerk. Tinham seis cilindros em V, mas dois funcionavam como compressores alternativos com pistão de duplo efeito. Só quatro eram diretamente encarregados da combustão. Tanto que esse motor era apresentado pela DKW como um V4 com a alusiva denominação "4=8". Foi fabricado por 9 anos. Com 1054 cm³ de deslocamento, potenciou os modelos Sunderklasse e Schwebeklasse.
Finalizando vale lembrar que tanto a configuração básica do motor de Day quanto a de Clerk ainda sobrevivem ao tempo, ambas com alterações e aprimoramentos . A de Clerk em motores diesel de dois tempos, que continuam a potenciar grandes navios. Já os motores de Day, agora com injeção eletrônica, competem em boas condições com o motor de quatro tempos no meio náutico. Recentemente, a espanhola Ossa lançou uma moto trail dois tempos, também injetada, que promete ser bastante competitiva.
Na área automobilística, há alguns anos, já com a imposição dos restritos limites de emissão, a Orbital Engines desenvolveu um motor de três cilindros com injeção eletrônica que prometia baixos índices de emissão e, rendimento e consumo melhores que os os de quatro tempos. Ford e BMW chegaram a instalá-lo experimentalmente em seus carros, mas não chegaram a produção comercial.
Nosso amigo Bob Sharp chegou a avaliar, na Inglaterra, um Fiesta com esse motor para a revista Quatro Rodas, edição de janeiro de 1993, e repassou boas impressões em seu texto. Outro dia ele lembrou essa matéria no Auto Entusiastas em comentário a um post do Juvenal sinalizando que "O único problema dos dois-tempos que os grandes da indústria pesquisaram foi a emissão de óxidos de nitrogênio (NOx)".
UM PASSEIO PELA HISTÓRIA DA EVOLUÇÃO DOS MOTORES DE DOIS TEMPOS
Fg06 - Motor original de dois tempos de Clerk - esquema que sobrevive nos motores diesel
Fg06 - Motor original de Joseph Day - transferência por válvula unidirecional no pistão
Fg07 - Versão evoluída do motor de Joseph Day - canais e janelas de transferência no lugar de válvulas
Fg08 - DKW V4 inspirado no modelo de Clerk - Um 2T com óleo no cárter e árvore de manivelas sem rolamentos
Fg09 - Motor DKW V4, o "4=8" produzido na década de 1930 por nove anos
Fg10 - Motor DKW V4 - Em cada bancada, o cilindro maior não entra na conta, é um compressor de duplo efeito
Fg11 - Motor DKW 1000cm³ "3=6" - Um légitimo "blue cloud"
FORD FIESTA COM MOTOR ORBITAL 2 TEMPOS - BOLA NA TRAVE
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E FONTES DAS IMAGENS
Livros consultados:
1) DKW - A grande história da pequena Maravilha; Paulo César Sandler; Ed. Alaúde
2) A História do Autovmóvel - A evolução da mobilidade; José Luiz Vieira; Ed. Alaúde
3) La escuela del técnico mecánico, VI Calderas, motores de combustión interna, motores hidráulicos
Sites consultados:
1) http://www.xtec.net/~cgarci38/ceta/tecnologia/motordkw.htm - 03/09/2011; 2) http://www.rider-and-road.com/Dictionary/engines.htm - 03/09/2011;
3) http://clubeautomotor.com/HIST%C3%93RIA_no_MUNDO.html- 03/09/2011;
4) http://www.rider-and-road.com/Dictionary/engines.htm#Clerk%Engine - 03/09/2011;
5) http://www.eurooldtimers.com/eng/galerie-stroj/2713-1936-dkw-schwebeklasse.html - 03/09/2011;
6) http://www.autoentusiastas.blogspot.com/2011/04/australianos-especiais.html - 02/09/2011;
7) http://www.rider-and-road.com/Timelines/Era1.htm - 23/07/2011;
Fontes das imagens:
Figura 01 - Foto do autor no Blue Cloud 2011
Figura 02 - Em http://library.thinkquest.org/C006011/english/sites/gasmotoren.php3?v=2
Figura 03 - Em http://www.nottingham.ac.uk/engines-group/otto_fig/ot_fig1.htm
Figura 04 - Em http://www.nottingham.ac.uk/engines-group/otto_fig/ot_fig5.htm
Figura 05 - Em http://www.eurooldtimers.com/eng/galerie-stroj/2713-1936-dkw-schwebeklasse.html
Figura 06 - Em http://www.rider-and-road.com/Dictionary/engines.htm#Clerk Engine
Figura 07 - Em http://modelenginenews.org/etw/2s/images/2s-fig1.jpg
Figura 08 - Em http://modelenginenews.org/etw/2s/images/2s-fig2.jpg
Figura 09 - Em http://www.eurooldtimers.com/eng/galerie-stroj/2713-1936-dkw-schwebeklasse.html
Figura 10 - Em http://www.eurooldtimers.com/eng/galerie-stroj/2713-1936-dkw-schwebeklasse.html
Figura 11 - Em http://www.dyna.co.za/cars/DKW_Diagram_Engine_-_New.jpg
Avaliação do Fiesta 2T - na revista Quatro Rodas Digital em http://quatrorodas.abril.com.br/acervodigital/
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